Uma oportunidade para universalizar o acesso de forma sustentável
Que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, o cidadão brasileiro já sabe. Afinal é o que se ouve e lê diariamente em artigos jornalísticos e acadêmicos que reiteradamente relembram a redação da primeira parte do artigo 196 da Constituição Federal.
O que o cidadão deveria saber, também, é o como esse direito será proporcionado pelo Estado para a população. A resposta está no mesmo artigo 196, que afirma que o direito à saúde será garantido mediante políticas públicas que objetivem à redução do risco de doenças e com o acesso universal e igualitário para toda a população.
Tais políticas públicas, que visam o acesso universal e igualitário, é o que o sistema único de saúde púbica – SUS – busca cotidianamente. Por mais desafios que o sistema de saúde pública possua, é fato que o SUS é referência mundial e deve ser preservado. Para tanto, precisa ser sustentável.
E o como perseguir a sustentabilidade passa por uma gestão eficaz e eficiente, o que é árduo e trabalhoso. Por isso, é comum ouvirmos e lermos que o problema do SUS está na falta de recursos financeiros e na judicialização da saúde. Respostas simplistas e sem comprovações empíricas, uma vez que, os recursos haveriam e a judicialização da saúde não ocorreria, caso houvesse acesso para os pacientes e uma gestão mais eficaz e eficiente do sistema.
O acesso é implementado por várias formas. Pela incorporação de tecnologias no SUS, aprimoramento do planejamento, busca de uma contínua gestão eficaz e eficiente do sistema, melhor alocação dos recursos financeiros e escuta da sociedade civil.
No rol para mais acesso ao direito à saúde está a Consulta Pública n. 59, da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde – Conitec, que trata da alteração do procedimento de incorporação no SUS das insulinas análogas de ação prolongada para o tratamento de diabetes mellitus tipo I.
Alteração do procedimento de incorporação, pois, em 2019, foi publicada a Portaria Conjunta n. 17/19 aprovando as diretrizes e os critérios a serem observados no SUS para o tratamento de diabetes mellitus tipo I. Naquela oportunidade defendi que, a despeito do avanço que essas diretrizes traziam para o SUS e para a sociedade brasileira, haviam equívocos técnicos nevrálgicos nas diretrizes aprovadas, de modo que as próximas compras de insulina pelo Ministério da Saúde criariam mais problemas do que soluções e, ainda, continuariam fomentando a judicialização.
Foi o que ocorreu. As tentativas de compra do medicamento realizadas pelo Ministério da Saúde, desde então, restaram fracassadas. Com o insucesso das compras a Conitec, acertadamente, decidiu reavaliar o tema. A revisão realizada por este órgão, que possui atuação política, reconheceu os equívocos das diretrizes iniciais: a existência das diferenças entre as insulinas análogas de ação prolongada e o custo de tratamento entre elas.
A revisão realizada pela Conitec culminou no relatório de recomendação preliminar favorável à manutenção da incorporação no SUS destas insulinas. Mas, com uma condicionante de observância de custo de tratamento igual ou inferior a um outro tipo de insulina.
É exatamente essa condicionante que poderá levar tudo ao fracasso, novamente. Para que isso não ocorra e, principalmente, para que uma importante política pública seja implementada com acesso universal e igualitário, 3 ajustes são fundamentais no relatório de recomendação final e no protocolo clínico de diretrizes de tratamento, documentos que servirão como base para o termo de referência dos futuros procedimentos de compra destes medicamentos pelo Ministério da Saúde.
O primeiro ajuste é o de esclarecer que as insulinas que englobam essa incorporação são produtos com princípios ativos diferentes e não intercambiáveis automaticamente – tal qual consta no relatório de recomendação – e, portanto, não podem ser tratados como se idênticos fossem. Isso para que o órgão ministerial realize procedimento licitatório de registro de preços para cada princípio ativo de medicamento incorporado ou um único procedimento licitatório com atas simultâneas de registro de preço para cada um dos produtos.
Segunda adequação consiste em definir o protocolo clínico a ser adotado em futuras eventuais hipóteses de trocas de insulinas no tratamento do paciente. Tanto para que os pacientes não tenham sua saúde e vida prejudicada diante da intercambialidade entre medicamentos biológicos, quanto para que se aprimore a gestão do SUS e para que a administração pública, de forma geral, não seja onerada indevidamente com eventos adversos das trocas como, por exemplo, internações, exames adicionais, judicialização, etc.
A adequação final está na necessidade de definição da métrica do custo de tratamento, ou seja, na metodologia a ser utilizada para equiparar o comparativo de custo de tratamento e preços entre todas as diferentes insulinas análogas de ação prolongada. Trata-se de definir, de forma transparente, a metodologia que será aplicada para o procedimento futuro de compra pública dos medicamentos pelo Ministério da Saúde.
Mesmo que as três adequações acima apontadas sejam feitas, ainda assim há risco de as futuras compras de insulinas no âmbito federal restarem infrutíferas. O motivo está na condicionante de observância do custo de tratamento, qual seja, na condição de equivaler o preço de insulinas que já são diferentes com o preço de uma outra insulina, que é a NPH.
Essa equiparação de preços – mesmo com a definição da metodologia de custo de tratamento – tende a ser inviável ante às características e diferenças entre todos os produtos. E isso é fato público e notório já provado nos pregões fracassados no passado recente.
As alternativas para que o acesso às insulinas seja universalizado e garantido aos pacientes – e que os fracassos nas compras não ocorram -, passam pela: (i) exclusão da condicionante de preço imposta no relatório; ou, (ii) ampliação do rol de posologia e formas de apresentações das insulinas.
Explica-se: tanto o protocolo de tratamento vigente quanto a recomendação sob Consulta Pública n. 59 dispõem que as insulinas análogas de ação prolongada para o tratamento de diabetes mellitus tipo I deverão ser fornecidas, tão somente, na posologia de 100U/ml e na apresentação e forma de tubete, com sistema de aplicador. Em que pese tal forma de apresentação seja de melhor manuseio para o paciente, é mais custosa do que outras formas de apresentação como, por exemplo, em frascos ou ampolas. Veja que o medicamento é o mesmo. O que muda é a forma como o produto é disponibilizado e como será ministrado e armazenado.
Permitir o fornecimento das insulinas em todas as formas de apresentação e posologia é a realidade que mais se aproximaria do custo de tratamento da condicionante exigida neste processo sob Consulta Pública. Portanto e a priori, mudar a forma de apresentação restritiva que atualmente é exigida no processo de incorporação destes medicamentos, bem como aumentar o rol de produtos para todas as posologias, é a realidade mais viável para se universalizar o acesso de forma igualitária destes medicamentos no âmbito do SUS e reduzir a judicialização destes medicamentos.
Assim, para que essa incorporação se materialize na prática, de duas uma: acrescenta-se nas diretrizes de tratamento a possibilidade de compra do medicamento em todas as suas formas de apresentação e posologia, universalizando o acesso, mantendo a condicionante financeira imposta e aumentando o leque concorrencial de produtos e fornecedores; ou, mantêm-se a recomendação como está, excluindo a condicionante de custo de tratamento.
A decisão final deve contar com o respeito da opinião de todos os atores sociais, já que a sociedade brasileira tem até o dia 03/10/2022 para se manifestar na Consulta Pública n. 59, sobre a proposta apresentada pela Conitec.
Eis uma grande oportunidade para que a sociedade expresse o que deseja com essa política de saúde pública: (1) a exclusão da incorporação destes medicamentos das diretrizes do SUS; (2) o acesso tal como recomendado pela Conitec, que novamente tende a fracassar na prática; ou, (3) o que se propõe aqui, o acesso à oferta de insulinas em todas as suas formas de apresentação e posologia, sem restrições, garantindo-se o acesso ao sistema de saúde de forma universal e com sustentabilidade orçamentária para o SUS.
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